sábado, 5 de junho de 2010

Boatos

Pior que tudo aconteceu rápido, lembro que estava quieto, beliscando alguma coisa e do nada senti um calor estranho, uma coisa tipo aquelas energias que saem dos caras de desenho, manja? Dragon Ball e tals... Como se fosse isso. Foi quando me deparei com o rapaz e ó, confesso: deu dó/medo.

Ele estava meio inquieto, andando de um lado pro outro e esbravejando, acho que pensava que fazendo aquela coisa toda, sua indignação iria passar ou mesmo diminuir um pouco. Que nada. Reparei que o infeliz só ficava mais nervoso e aquele tal calor aumentava consideravelmente. Acho que nem todos sentem essas coisas de calor e energias de desenhos, né?

Curioso de nascimento, fui me aproximando até conseguir entender o que acontecia com ele. Queria saber o que gerava aquela raiva toda, que brotava cada vez mais daquele ser bizonho. Foi quando percebi que ele estava mantendo um diálogo com uma mulher e, mesmo sendo novo naquele setor, eu logo notei que eles já tinham uma certa intimidade, que eram amigos de longa data. Até achei estranho o cara ficar tão puto com uma pessoa que ele tratava de uma forma diferente das demais. Resolvi me aproximar e passando atrás do cara eu consegui visualizar algumas coisas do que ele estava escrevendo, e foi claro quando li: “Meu, não agüento mais essa merda, muita conversa paralela. Nada do que eu falo é suficiente pra rebater o que essas vagabundas daqui pensam! O que eu preciso fazer pra isso parar? Você acha que isso precisava chegar aonde chegou? Você acha que eu vou conseguir reverter o que fizeram?!“ .

Disfarcei e fiquei por perto esperando alguma reação da amiga ou mesmo uma resposta. Pensei que com sorte eu conseguiria visualizar alguma coisa... Rãã, “na mosca”!

Não demorou muito para que chegasse uma resposta (que aparentemente não foi das melhores) da amiga em questão, porque mano!, pense numa raivinha, numa demonstração pífia de braveza, que do nada se tornou fúria descontrolada e desorientada! As maiorias das pessoas que estavam por perto pararam em choque, outras se viraram espantadas e começaram a prestar atenção quando aquela conversinha se tornou pública e meio que ofensiva!

Claro, como toda boa briga - mesmo que nesse caso o outro adversário não estava muito claro para os expectadores - a turma dos panos quentes chegou e tentou acalmar o raivoso. Dei risada. Palhaçada! Ninguém ali tinha culhão para segurar ou acalmar a besta!

Por fim, e para alívio maior de todos, o rapaz subitamente se acalmou, parou e fitou todos os que estavam por perto e de cabeça baixa se retirou da sala. Eu queria ir atrás e ver o que ele faria, mais pensei que ficando ali, mesmo que por poucos segundos, eu conseguiria mais informações que sem dúvida seriam valiosíssimas para que eu entendesse o contexto do problema. Não me equivoquei. Logo em após a saída do rapaz, umas das mulheres que estavam mais próximas da saída começaram:

Moça 1: “Nossa, eu não sabia que ele algum dia ficaria assim tão puto!”

Moça 2: “Não vem não, o que fizeram com o Henrique foi uma puta sacanagem! Não me estranha nem um pouco essa atitude de loco dele...”

Eu para mim mesmo: “Henrique... sacanagem...”

Moça 1: “Não sei não, sempre achei que ele arrastava uma asinha pra cima daquela fulana... Aliás, não só dela, né?”

Quando reparei que o negocio havia ficado meio que sem nexo e as duas fofoqueiras de plantão já haviam perdido o foco, abandonei-as e me apressei para alcançar o rapaz que a partir de agora ganhava um nome, Henrique.

Henrique era um cara normal, nada de mais havia nele. Estatura mediana, cabelo ralo e pele morena. A única coisa que o diferenciava dos demais era uma cicatriz que havia ganhado no lado direito do rosto, provavelmente fruto de alguma peripécia quando criança.

Quando o alcancei (claro que mantendo certa distância para que ele não percebesse que eu o seguia), ele já estava se dirigindo para uma loja de conveniência. Andava a passos largos e apressados e da mesma forma adentrou na loja. Já dentro da espelunca, não pensou duas vezes e foi logo em direção ao freezer que guardava as bebidas fortes. Olhou, olhou, olhou e acabou escolhendo uma garrafa pocket de vodka. No caminho do caixa parou de repente e olhou para baixo, esticando rapidamente o braço e não perdendo tempo, usando apenas um movimento, deixou a garrafinha de vodka de lado e pegou um barrilzinho de Corote. Todos perceberam quando Henrique soltou, “porra, é isso que eu preciso” e automaticamente, como um motor v8 que necessitava de álcool mais que tudo na “vida”, abriu o barrilzinho e virou aquele liquido incolor e quente. Claro, não agüentou muito e gorfou o excesso. Fato que o pouco que ele bebeu foi suficiente pra deixá-lo tonto e pelo que percebi depois, cheio de coragem.

Segundo informação de uma pessoa que passava em frente à conveniência, e que foi abordada por Henrique, o dia estava acabando - eram cinco da tarde - e sem ao menos agradecer, Henrique deu as costas ao anônimo informante e se apressou rua acima. Naquele momento entendi que o líquido alcoólico que ele havia ingerido iria facilitar as coisas para mim, pois ainda vivia em mim aquela curiosidade maldita e se não fosse o líquido, Henrique não desembestaria a falar sozinho, praticamente debatendo com ele mesmo a cada movimento ou decisão que tomava.

Para a minha surpresa, a primeira coisa que eu escutei daquela boca fedida foi: “Ana...” Logo na seqüência vieram: “preciso ver a maldita Ana!”, e falava com voz pesada.

Foi com espanto que percebi como o cidadão – cambaleando, claro – começou a correr e entrou no primeiro ônibus que apareceu. Custei mais consegui alcançar o ônibus em que ele estava e pelo que percebi, não fui notado.

Andamos por meia cidade e quando reparei estávamos em uma bela de uma quebrada, deus me livre. Fiquei olhando tão atento para aquela paisagem que nem reparei que o ônibus parava e que se dava início a decida dos passageiros. Para falar a verdade, não fosse o cobrador gritando: “’bóra’ bando de leso! Só tenho quinze minutos de janta e pretendo fazer eles todos!” - português tosco – iria demorar uma eternidade pro povo descer. Me apressei e desci bem atrás de Henrique. Até consegui escutá-lo repetindo várias e várias vezes o bendito do nome “Ana”. Misteriosa Ana.

Depois de poucos minutos a pé por ruas, vielas estreitas e pequenos barrancos, chegamos a uma casa verde claro, de dois andares e com janelas e portas pretas. Sem pensar Henrique urrou: “ANAA!”

Quase que me fiz presente, de tão assustado que fiquei na hora do berro, aquela voz carregava um misto de raiva e desespero, acho que mais desespero do que raiva, e continuou a sair da boca de Henrique por mais três vezes, na terceira, a porta abriu repentinamente e uma mão negra e grande saltou da escuridão que existia no interior da casa, agarrou Henrique e o puxou para dentro! Não consegui ver nada a partir desse momento, porém com a mesma raiva que Henrique clamava por Ana, a voz dentro da casa o advertia dizendo: “NA PRÓXIMA VEZ QUE EU VER ESSA MERDA DESSA CARA BRANCA AQUI NA PORTA DA MINHA CASA, JURO POR OXUM QUE ARRANCO SEU SACO E COLOCO NA SUA BOCA! SOME DAQUI!”

Eu já não estava mais me escondendo, já estava completamente visível e me esforçando ao máximo para conseguir ver o rosto daquela pessoa furiosa. Claro que isso me deixou completamente visível, só que a minha curiosidade era maior que o medo e, foi aí que pensei ter me fodido. De repente Henrique foi jogado porta a fora e sem ao menos cair no chão, se virou e correu pra onde aquele nariz feio apontava! Óbvio que o nariz dela apontava para a minha direção. O problema foi que tudo aconteceu muito rápido e eu não tive tempo de me esconder ou mesmo disfarçar, nesse momento eu pensei que seria descoberto e que todo esse acompanhamento que eu havia feito, teria sido em vão. Todo esse meu medo de ser descoberto ficou pra trás quando Henrique passou feito uma bala por mim. Acredito que ele nem notou a minha presença, pois praticamente passou por baixo de mim, era como se eu não estivesse ali, sabe? Ele estava branco e tinha as pupilas dilatadas, tamanho era o desespero que deveria estar sentindo naquela situação.

Fiquei estático por mais alguns momentos e quando recobrei o juízo me lembrei que havia um ser desesperado andando pelo mundo atrás de uma fulana chamada Ana. Tinha que achá-lo e por isso voei. Encontrei o infeliz parado na frente de um estabelecimento estranho, sujo e com um cheiro forte. Lá ele entrou e pediu uma dose do que tinha de mais forte. Tão logo acabou de falar, o copo já estava lá, cheio e com a mesma velocidade que o preencheram com aquele liquido negro, também se esvaziou. Depois da seqüência de caretas seguidas de um pouco de refluxo, veio o pedido: “mais um!”, e a historia se repetiu por mais duas vezes.

Quando finalmente acabou, pagou o que devia sem ao menos conferir o valor entregue ao rapaz que o serviu, que pela cara que fez, havia recebido muito mais do que o devido. Saiu do local e olhou para o céu, este já estava totalmente escuro. Ele olhou e olhou como se procurasse alguma coisa por entre a imensidão escura e vazia.

Nessa hora comecei a pensar comigo mesmo, sabe quando você percebe que a pessoa desistiu? Quando você olha para ela e vê a palavra “fodido” estampado na cara? Aprendi isso sem ninguém precisar me ensinar, foi só olhar para a cara de Henrique que vi que ele havia perdido, e o pior de tudo é que em cada minuto que passava, eu achava as coisas mais estranhas. Ficava mais intrigado com o que estava levando aquele rapaz a ficar tão pra baixo. Continuei seguindo-o, e ele aparentemente estava sem rumo. Após alguns minutos andando a esmo, parou. Parou e olhou para trás. Naquela hora eu senti que ele estava pensando seriamente em voltar. Acho que ele ate cogitou engolir o próprio saco como castigo pela petulância. Pelo jeito valia o risco, pois Henrique estufou o peito e correu em direção da casa verde clara. Correu tanto que em determinado momento do percurso tropeçou e por pouco não enfiou a boca em um monte de pedras que estavam aglomeradas em um canto da rua escura. Chegando na casa – e repetindo a merda original – berrou o nome de Ana a plenos pulmões: ”AAAAAANNNNAAAAA!”. Juro que senti a casa vibrar com o berro de Henrique e inclusive reparei que ele ficou nitidamente sofrido depois do mesmo. Parecia cansado e respirando com dificuldade.

Como da vez anterior, a porta se abriu só que dessa vez não foi uma mão que saiu, foi um corpo inteiro. Grande e gordo. Agarrou e o trouxe para perto. Naquela hora eu percebi que a merda tava feita. Pensei em até virar a cabeça pra não ver a cena grotesca que se desenhava quando ouvi aquele barulho seco, semelhante a uma martelada em um coco. TOC! De repente Henrique se soltou e o corpo bisonho do gordo começou a cambalear. Antes mesmo que o ogro que o agarrou tivesse a chance de colocar a mão na cabeça em uma tentativa de estancar o sangue que escorria protuberantemente, Henrique desferiu outro golpe, no mesmo lugar. TOC! Nesse momento pude ver a pedra que Henrique carregava, não era grande, mas suficientemente firme para derrubar um touro daquele. Mais que merda, pensei: “que hora que o filho da puta pegou aquela pedra?” Dediquei meu dia a segui-lo e não me recordo de tê-lo visto com aquilo. Porra, não era algo que você esconde na cueca ou sei lá o quê. Fiquei pensando e a única coisa que me veio à cabeça foi o momento em que ele quase caiu na rua escura... É, deve ter sido lá.

Enquanto o corpo do grandão caia de lado se estrebuchando todo, Henrique avançou a casa, gritando por Ana. Ana, Ana... Ana... era uma repetição de ”Anas” e cada um mais alto que o anterior.

Como a casa não era grande, Henrique a vasculhou rápido e não tardou a encontrar uma figura baixa e acuada que assim que percebeu a presença de Henrique, se mexeu e correu em direção à rua. Enquanto corria, gritava um misto de “some daqui seu lazarento!” com “você nunca mereceu meu amor!”. A merda se deu quando a figura mirrada saiu da casa e encontrou o corpo largado no chão com a cabeça estourada. Aí fodeu.

Ana estava parada, estática. Olhando, olhando e olhando aquele corpo caído, parecia não entender o que estava acontecendo. Acho que a dúvida dela era parecida com a minha, no mínimo ela devia estar pensando como que um brucutu daquele poderia cair. Como ele poderia ser atingido bem na cabeça, no ponto mais alto do seu corpo? A cabeça dele estava a mais de dois metros do chão e não era qualquer um que chegaria até ali. Henrique? Não não, Henrique era um bosta, pequeno e frágil. Coincidentemente Henrique saiu e ela o fitou, olhou dos pés a cabeça imaginando como que um infeliz daquele poderia ter feito tamanho estrago na cabeça do grandão. A feição dela só mudou depois que reparou que havia sangue na mão de Henrique. Nesse momento aquele corpo pequeno e frágil mudou de tamanho, e a frágil mulher de cor negra e aparência sofrida partiu pra cima de Henrique sem o menor pudor e com o rosto cheio de fúria! “VOCÊ MATOU MEU PAI!” “AAAAA MALDITO”. Henrique, com certa dificuldade, domou a fera e com ela em seus braços ouviu “alem de me chifrar, acabou com o meu pai...”. Henrique nessa hora ficou branco, provavelmente caindo na real e percebendo o que havia feito. “Não Ana, eu não matei ninguém, eu apenas me defendi”, tentou justificar a merda toda. “Não” – em prantos Ana balbuciava – “não fala nada, apenas sai daqui”. Essas palavras machucaram Henrique bem no fundo e ele não fez a mínima questão de esconder isso. Largou Ana com cuidado, como se não quisesse largá-la, como se ele fosse uma criança e ela o seu brinquedo mais valioso que poderia ter. Por fim a largou, e ela repousou ao lado do corpo moribundo de seu pai. “O que eu faço agora?” – dizia - “O QUE EU FAÇO!” De imediato e bem baixinho deu pra ouvir: “desaparece, sério... Desaparece!”, disse o pai de Ana.

Henrique então andou, de cabeça baixa e cambaleando e tropeçando ele andou. Mesmo eu pensando que ele faria, não parou de andar, mesmo quando foi atravessar a rua em que havia saído do ônibus. Faltando uns três passos para concluir a travessia e chegar na calçada, eis que surge uma moto empinando e acerta em cheio Henrique. Pneu versus cabeça. Voei até o local, meio que prevendo a desgraça que poderia verificar. De qualquer modo foi em vão. Quando cheguei, o primeiro corpo que vi foi o do moleque que pilotava a moto. Ele estava vivo porém todo torto. Henrique por sua vez já estava semimorto quando eu cheguei perto. Resmungava coisas como “Ana, por quê?”, não demorou muito para que a respiração dele cessasse.

Ainda cheio de pontos de interrogação sai dali. Decidi voltar pra casa pois pela manha iria voltar ao trabalho de Henrique para entender melhor a situação. Resolvi comer. Não muito longe do local da tragédia achei um belo monte de bosta...parecia ser de cachorro. Cheguei perto e esfreguei as mãozinhas agradecendo a Deus por um banquete tão lindo. O dia havia sido difícil.

Pronto, agora posso descansar.